Enquanto molécula, a água pode ser entendida como um elemento do quadro físico natural da Terra, sem conotações econômicas, políticas ou sociais. Essa visão simplista, todavia, limita a compreensão de sua distribuição no tempo e espaço e impede que os fluxos de água sejam entendidos em sua plenitude, em que tanto se constituem por forças da natureza quanto são controlados por aspectos humanos. Nessa concepção, a água é um híbrido entre natureza e sociedade, dotada de características físicas e humanas, o que perfaz a Hidrogeografia a partir de um ciclo hidrossocial.
Rio São Francisco em Januária, MG (Fonte: Leonardo Gentio/Wikimedia Commons)
O ciclo hidrossocial é entendido como um conjunto de processos por meio dos quais água e sociedade se criam e recriam no tempo e no espaço. Se no passado era comum buscar entender o ciclo hidrológico, com seus processos herméticos e abordagem mecanicista, como o modelo básico de circulação da água no planeta, hoje nos questionamos sobre a sua eficácia ao excluir as variáveis sociais da dinâmica da água. A concepção da água como recurso hídrico (ou seja, uma visão utilitarista e economicista) implica um complexo jogo de poderes que se estabelece para redirecionar os fluxos de água e abastecer os interesses preponderantes. Normalmente, nessa balança o peso dos aspectos econômicos é cabal.
Como exemplo disso, temos as constantes transposições de bacia hidrográfica, que fazem a água “subir morros” e a deslocam em um vetor não natural, controlado por interesses sociais, políticos e econômicos, os mais diversos. Um caso mais conhecido é o da transposição do rio São Francisco.
Sobrevoo sobre o canal do rio São Francisco no Estado do Ceará (Fonte: Isac Nóbrega/PR)
Em menor escala, transposições de água entre diferentes bacias são comuns, por exemplo, em áreas urbanas, quando as adutoras das companhias de saneamento promovem novos caminhos para o deslocamento da água, criando uma rede hidrográfica muito mais complexa do que aquela meramente fluvial.
Esses novos fluxos ganham ainda mais relevância e destaque nos termos do comércio internacional de commodities, visto que a água é comumente usada no processo produtivo pelas grandes corporações dos setores agropecuário/alimentos e minerário, principalmente. Guiadas pelo grande capital, novas lógicas de circulação da água são conformadas.
Na América Latina, a criação de novos territórios hidrossociais a partir do afluxo de capital, sobretudo do setor agroexportador, com o domínio e controle das águas por determinados atores econômicos, promove inúmeros conflitos sociais. A inclusão das variáveis sociais e econômicas no ciclo hidrológico o desconstrói para ser reconstruído sobre pilares políticos, em que os caminhos da água perpassam interesses de grupos sociais distintos, compreendendo o ciclo hidrossocial.
Dessa forma, a abordagem hidrossocial é, na realidade, uma visão dialógica entre as dimensões física, social, política e simbólica da água. Assumem-se diversas facetas de apreensão da água, concepção mais que necessária para a Hidrogeografia, uma vez que as intervenções no ciclo hidrológico se materializam em escala local e global, cada qual com elementos próprios de manifestação.
Por isso, a gestão das águas tem a missão de compreender o caráter político dos usos e usuários da água, definindo “quem” receberá “qual” água (do ponto de vista de qualidade e quantidade) e “quem” deve controlar/gerir/decidir como o ciclo hidrossocial deve ser organizado. Isso mostra que a gestão das águas, tradicionalmente entendida como uma tarefa técnica, em consonância com a visão mecanicista do ciclo hidrológico, deve ser reconhecida por cumprir uma função política e social, de múltiplos atores.
Portanto, mais do que dimensionar e compreender a oferta e demanda de água em um determinado recorte espacial, cabe à Hidrogeografia conhecer os sujeitos e suas atuações nos fluxos de água.
Considerando o poder econômico intimamente ligado ao poder político (inclusive na gestão das águas), grupos podem ser privilegiados em situações de crise em detrimento de outros. Nessa conjuntura, conflitos são gerados em um cenário de assimetria de poderes, em que a disponibilidade de recursos hídricos para uns pode significar a escassez para outros.
Para saber mais
Essa matéria foi adaptada do livro Recursos hídricos: as águas na interface sociedade-natureza, organizada por Antônio Pereira Magalhães Júnior e Frederico Wagner de Azevedo Lopes.
Reunindo oito capítulos escritos por especialistas, a obra apresenta um rico panorama sobre as águas e sua relação com as comunidades ao redor do mundo. Saiba mais sobre o livro aqui!
Capa do livro “Recursos hídricos: as águas na interface sociedade-natureza”, publicação da Editora Oficina de Textos