Debris flow: o que houve no passado e o que ainda pode acontecer

Especialistas fazem revisão histórica e técnica do debris flow, fenômeno que isolou um município inteiro em março de 1967

Caraguatatuba, cidade litorânea no norte do Estado de São Paulo, foi cenário de um desastre natural sem precedentes. Há 55 anos, um evento de debris flow varreu grande parte da região e vitimou centenas de pessoas. Acredita-se até que o número de vítimas tenha sido mais de 1.000. Foi um marco na história do País e tem sido discutido e revisitado por geólogos e geotécnicos. 

O lançamento da obra Debris flow na Serra do Mar é um alerta às autoridades, acreditam os autores. “Caraguatatuba é uma região sujeita a repetições desse fenômeno”, explica o engenheiro e professor Faiçal Massad, um dos autores da obra. “Talvez não com a mesma intensidade observada em 1967, mas, por ser um município com muito mais densidade populacional do que há 55 anos, qualquer evento de debris flow hoje vitimizaria uma quantidade muito maior de pessoas”.  

Como foi debris flow que marcou a história 

Durante um período chuvoso em março de 1967, ocorreu na Bacia do Rio Santo Antônio, em Caraguatatuba (SP), um grande conjunto de escorregamentos que propiciou o surgimento do fenômeno conhecido como debris flow – ou “corrida de detritos”. O geólogo Márcio Angelieri Cunha, um dos autores do livro Debris Flow na Serra do Mar, descreve o fenômeno como uma “grande avalanche de solo, água, rochas e árvores, que desliza encosta abaixo destruindo tudo o que houver pela frente”.

O poder de destruição desse tipo de fenômeno é impressionante”, explica Cunha. “O volume de massa aumenta no decorrer do deslizamento; os materiais se acumulam e seguem descendo até que toda essa lama repleta de árvores e rochas chega às planícies, onde acaba se espraiando”. Wilson Shoji Iyomasa, geólogo e também autor do livro, salienta o poder do fenômeno. “É um tipo de lama capaz de fazer rochas enormes, de 2 ou 3 metros de diâmetro, flutuarem”. 

No caso de Caraguatatuba, o debris flow atingiu a área urbana, que já era bastante ocupada. A imprensa da época falava em 400 mortes, mas o número poderia ser ainda maior. “Extraoficialmente, estimavam-se mais de mil vidas perdidas”, comenta Cunha.

O socorro não veio rapidamente. Numa época de tecnologia pouco desenvolvida, quando uma rádio amadora da cidade finalmente conseguiu contato com os municípios vizinhos, já havia passado mais de um dia do acontecimento. “Quando chegou, a ajuda veio principalmente por mar”, relata o geólogo Marcos Saito de Paula, também autor do livro. “Ubatuba, cidade vizinha ao norte, conseguiu prestar algum socorro vindo de estrada. Mas o centro da cidade de Caraguatatuba ficou sem acesso nenhum vindo da capital, São Paulo, e de outras cidades do litoral sul”. 

Cunha explica que o acesso ao município ficou especialmente prejudicado porque o fenômeno atingiu também a Rodovia dos Tamoios. “A intensa chuva que provocou o debris flow naquele dia atingiu primeiro a Rodovia, que foi completamente interditada”, diz. “Foram necessários meses para que o trecho de serra da Rodovia fosse recuperado até ser possível de novo a passagem”.

O engenheiro geotécnico Faiçal Massad, que também assina o livro, conta que o cenário era desolador. “Os primeiros geólogos que chegaram ao local fizeram estudos e concluíram que ocorreram cerca de 700 deslizamentos de terra naquela ocasião”, afirma. “O evento de 1967 foi descrito como um dos piores do mundo”. 

Iminência de novos eventos de debris flow

Cunha ressalta que escorregamentos não são eventos anormais. “A Serra do Mar tem no seu processo de formação geológica os escorregamentos, o que significa que eles vão ocorrer indefinidamente”, explica o geólogo. “E à medida que os volumes de chuva aumentam, a tendência é aumentar a ocorrência de escorregamentos”.

Por isso, Massad afirma que é praticamente impossível aplicar soluções de engenharia que impeçam que debris flows aconteçam. “Teriam de ser feitas obras nos topos dos morros, em centenas deles, o que é inviável economicamente”, explica o geotécnico. Outra solução seria tentar controlar o fenômeno. “Se o fluxo de detritos ocorrer, seria possível fazer um controle de seu curso para deter grandes blocos de rocha, impor barreiras para conter as árvores e forçar que o volume de lama e detritos sejam conduzidos lentamente por um rio, por exemplo”, aponta Massad.

Mas é um tipo de fenômeno que não se consegue impedir”, lembra Marcos Saito. “Assim como no caso de terremotos e de erupções vulcânicas, é possível saber onde pode acontecer um debris flow, mas não exatamente quando pode acontecer”.

Medidas não estruturais são a chave para evitar tragédias

A principal medida para evitar tragédias com perdas humanas é, na visão dos especialistas, priorizar o cuidado com ocupações irregulares. “Especificamente em Caraguatatuba, existe uma série de cartas de risco que procuram definir áreas sujeitas a diversos tipos de problema, inclusive debris flows”, afirma Cunha. “Preventivamente, essas áreas não deveriam ser ocupadas pela população”. 

Wilson Iyomasa também reforça que eventos mais comuns podem ser evitados com medidas que ofereçam habitação aos moradores que se instalaram em áreas de risco. “As tragédias decorrentes de escorregamentos podem, sim, ser evitadas – desde que o Poder Público oriente os riscos e crie soluções para a população”. 

Saito salienta que a comunidade técnica tem conhecimento sobre o assunto e oferece instrumentos para contribuir com soluções que minimizem os impactos de acontecimentos de grandes proporções. “Essa foi uma das motivações da elaboração do livro – disseminar conhecimento técnico sobre um assunto que sabemos que é um risco”, diz. “Mas cabe ao Poder Público tratar da questão da ocupação urbana e utilizar as informações que estão disponibilizadas”. 

Veja o vídeo da entrevista com os autores aqui.


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