Faiçal Massad fala sobre o deslizamento na Serra do Mar

No dia 22 de fevereiro de 2013, sexta-feira, ocorreu um deslizamento na Serra do Mar que interditou os túneis 10 e 11 da pista norte na Rodovia Imigrantes. Segundo José Carlos Cassaniga, diretor-superintendente da concessionária Ecovias, o acidente, que atingiu 24 veículos e provocou a morte de uma pessoa, foi causado pelas fortes chuvas.

As apurações das equipes da Ecovias revelaram que havia 183,4 milímetros de água acumulados no dia, quantidade muito superior à cota mensal que atinge a região, correspondente a 30 milímetros de chuva. Juntamente com os altos índices pluviométricos do verão, a retirada de coberturas vegetais e outras ações do homem também influenciam no escorregamento de materiais sólidos, como solos, rochas, vegetação e/ou material de construção ao longo de terrenos inclinados.

Embora escorregamentos sejam naturais – mesmo que adiantados por ações do homem –, acabam por causar problemas à população e ao ambiente nos arredores do local onde aconteceu o deslizamento.

Confira abaixo uma entrevista com Faiçal Massad, Professor Titular em Mecânica dos Solos, Obras de Terra e Fundações da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador dos estudos sobre debris flows na região de Cubatão, São Paulo, no âmbito do Convênio Petrobrás-USP, na qual ele fala sobre o projeto desenvolvido e como essa solução pode ser aplicada em outros locais.

Comunitexto (CT): O senhor atuou em um projeto na Poli em parceria com a Petrobras para reduzir o impacto de deslizamentos na refinaria em Cubatão. Pode contar um pouco mais a respeito dessa iniciativa?

Faiçal Massad (FM): Para começar, faz-se necessário um pouco de história envolvendo fenômenos como deslizamentos e fluxos de detritos (debris flows) ou corridas de massas na Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão (RPBC).

A ocorrência de chuvas intensas, frequentes durante o verão, vem causando transtornos à RPBC desde a sua instalação. Até 1985 as consequências se limitaram a assoreamento da represa de captação de água e espalhamento de folhas, galhos e lama pela área, sem riscos para as instalações ou para a operação normal da refinaria. Em janeiro de 1985, uma chuva forte provocou deslizamentos de encostas, causando a invasão de ruas da área norte por lama, pedras e galhos, além do assoreamento da represa.

Em fevereiro de 1994, em decorrência de quase uma centena de escorregamentos na bacia do Córrego das Pedras, um debris flow atingiu a RPBC, causando danos às suas instalações. O horto florestal, uma área de lazer e oito das nove barragens tipo gabião, construídas em 1985, foram totalmente destruídas. Esse fluxo causou o transporte de um volume aproximado de 300.000 m³ de água, detritos e grandes pedras, atingindo tanques da área norte, a área administrativa, a maioria das ruas e quase todas as unidades de processo. Em consequência, houve paralisação total da produção durante dez dias, o que gerou um decréscimo de aproximadamente US$ 44 milhões na receita da refinaria, e um custo para a limpeza da área afetada na ordem de US$ 2 milhões.

Vista aérea da região do deslizamento na Serra do Mar, com um traçado delimitando a área principal, um pontilhado indicando o Córrego das Pedras e os trechos de deslizamento.

Vista aérea de trecho da bacia do Córrego das Pedras após o debris flow de 1994

Foto das cicatrizes deixadas pelo deslizamento nos morros.

Erosão intensa e cicatrizes de escorregamentos após o debris flow de 1994

Os debris flows são fenômenos devastadores, muito rápidos, que ocorrem em segundos ou, no máximo, minutos. Eles podem se originar de escorregamentos múltiplos em regiões serranas e da remobilização de material pedregoso do leito dos córregos, além da erosão de suas margens. Apresentam velocidades muito elevadas e em muito superiores à da água em condições semelhantes, podendo ultrapassar os 100 km/h, gerando grande força de impacto e de arraste. Massas de água, lama, pedregulhos, blocos de rocha, troncos de árvores e galharada deslizam encosta abaixo, em taludes tão suaves como 4, 6 e 8. O movimento da massa é sui generis: forma-se uma “camada crítica” de lama na parte inferior, que mantém os pedregulhos e os blocos de rocha em suspensão e em movimento.

Atendendo à recomendação da Comissão Especial para Restauração da Serra do Mar e do IPT, a Petrobras decidiu desenvolver estudos para a proteção da Refinaria contra novas ocorrências. Com esse objetivo, celebrou em 1995 um convênio com a Universidade de São Paulo (USP). Os estudos envolveram a atuação de profissionais das seguintes áreas: a) Geologia; b) Geotecnia; c) Hidrologia/Hidráulica; d) Materiais de Construção/Construção Civil; e) Estruturas; e f) Agronomia.

Nesse contexto foi preparado o “Projeto de Assistência Técnica e Científica para os problemas de cheias e corridas de massas (debris flows), nas Vertentes da RPBC, provenientes de erosão e deslizamentos na Serra do Mar, em Cubatão (SP)”. Mais especificamente, o projeto objetivou:

a)   caracterizar o fenômeno do ponto de vista topográfico, geológico, geotécnico e climático, incluindo: i) estudos sobre as fontes de materiais, quer das encostas, passíveis de sofrerem escorregamentos, quer dos depósitos coluvionares e aluvionares, existentes nas margens e leitos dos córregos; e ii) correlações entre a intensidade dos debris flows e a incidência de chuvas;

b)   entender o seu mecanismo, com a determinação de parâmetros para o projeto, como a velocidade do fluxo, a sua vazão de pico, os volumes e a granulometria do material transportado, as zonas de transporte ou de deposição etc.;

c)    indicar soluções e fornecer subsídios para o projeto e a execução de obras para a proteção de vidas e das instalações industriais da refinaria, bem como preservar o meio ambiente;

d)   proceder ao monitoramento dessas obras e à coleta de novos dados de campo, essenciais para o progresso dos conhecimentos nesta área da engenharia.

Fotos aéreas dos danos causados pelo deslizamento às estruturas ao pé dos morros, que ficaram cheias de lama.

Alguns danos causados pelo debris flow de 1994: à esquerda, o Horto Florestal, destruído; à direita, os tanques da área norte

CT: Quais foram os principais resultados do projeto?

FM: Destaca-se inicialmente que, diante de fenômenos desse tipo e magnitude, deve-se enfatizar mais o seu controle do que a sua prevenção. E isso porque, quando catastróficos, eles ocorrem associados a chuvas ditas extremas, capazes de provocar, por vezes, como foi mencionado acima, centenas de escorregamentos em locais inacessíveis e imprevisíveis.

Os estudos foram desenvolvidos em várias etapas: a) levantamento do histórico dos eventos anteriores, com ênfase na intensidade das chuvas que os ocasionaram, nos danos provocados etc.; b) levantamentos de campo necessários para os estudos, abrangendo as condições geológicas e topográficas, a identificação das fontes de materiais etc.; c) definição dos parâmetros para os projetos; e d) escolha dos locais das obras de proteção de instalações da RPBC.

Como resultado desses estudos foram propostas e executadas várias obras de controle dos debris flows. Entre elas, citam-se: a) três barragens permeáveis, visando a retenção de parte dos sedimentos e detritos, a quebra de energia e a redução das vazões de pico dos debris flows; b) um grande reservatório para a acumulação temporária de sedimentos mais finos; c) obras de fixação do leito dos córregos e das suas margens; d) estruturas especiais para a retenção de troncos de árvores e galharadas; e e) galerias, canais e tubulações para a condução dos debris flows para áreas de deposição (lagoa de sedimentação) e, daí, o escoamento da água livre de sedimentos para o Rio Perequê.

Vista de montante da barragem BF-2

Uma das obras executadas: vista de montante da barragem BF-2

Vista de montante das barragens BS-1 e BS-2

Mais uma obra efetuada: vista de montante das barragens BS-1 e BS-2 e do dique lateral à direita

CT: Há ações do projeto ainda em implantação?

FM: As obras foram concluídas em 2003. Atualmente é feito um acompanhamento periódico para avaliação do desempenho das obras e a sua manutenção, também com a preocupação de coletar novos dados de campo.

CT: Ele poderia ser aplicado em larga escala para evitar problemas semelhantes aos da Serra do Mar/Rodovia Imigrantes? Onde?

FM: A experiência acumulada no controle de debris flows indica que é necessário executar um conjunto de obras sequenciais, com funções diversas e complementares, como as da RPBC. Seus custos são muito elevados, requerem espaços para a sua implantação e só se justificam para proteger vidas humanas, propriedades urbanas e instalações industriais. É indispensável dispor do histórico de eventos pretéritos, seja através de registros de sua ocorrência, seja através de investigações de campo, de cunho geológico e geomorfológico.

estabilização de taludes, para evitar deslizamentos, e o tratamento de processos erosivos junto às encostas constituem-se em formas eficientes de tentar “deter” um debris flow no nascedouro. No entanto, só isso não basta: um evento desses pode ser de origem secundária, isto é, ocorrer com a mobilização de material pedregoso do leito dos córregos e a erosão de suas margens. Ademais, essas obras de estabilização também envolvem custos muito elevados e, em geral, locais de difícil acesso.

Existem situações, como em regiões serranas densamente povoadas, em que não há espaço para a implantação de obras de controle de debris flows ao longo de linhas de drenagem. Nesses casos, as obras restringem-se à estabilização de encostas, na tentativa de impedir escorregamentos que possam gerar os debris flows, e à fixação de blocos de rocha nos leitos das linhas de drenagem.

CT: Um dos exemplos de debris flow com graves consequências foi o que ocorreu em Caraguatatuba em 1967. Quais foram as soluções adotadas na época? O que mudou até o momento?

FM: Até onde se sabe, pouco ou nada se fez após o desastre ocorrido em março de 1967 no município de Caraguatatuba. O risco de vítimas humanas e danos materiais na região, na eventualidade de ocorrer um debris flow de mesma magnitude, é muito maior nos dias de hoje, devido ao significativo aumento populacional (mais que sextuplicou) e ao estabelecimento de grandes indústrias, como a petrolífera do pré-sal, com reduzidos e muitas vezes inexistentes sistemas de proteção.

Atualmente têm sido realizados estudos detalhados que possibilitarão a elaboração de planos diretores mais eficazes, melhores diretrizes para a tomada de decisões, planos de contingência, regulação da distribuição da população, ações mitigadoras e remediadoras, no contexto da Lei nº 12.608 de abril de 2012. Como se recorda, essa lei instituiu a política nacional de proteção e defesa civil, além de trazer dispositivos para melhorar a capacidade dos municípios para fazer frente aos desastres naturais. É a expectativa do nosso meio geotécnico.


Tudo a ver

Se você gostou desta matéria, precisa conferir o livro Obras de terra de Faiçal Massad, Professor Titular da Escola Politécnica da USP e ganhador de seis prêmios na área de Engenharia Civil, entre eles o Prêmio Terzaghi.

Capa de Obras de terra.

Obras de terra aborda, entre outros assuntos, a necessidade de uma infraestrutura sólida de estradas, transporte, saneamento, energia, habitação, instalações escolares, hospitalares e industriais para o desenvolvimento de um País, especialmente no que concerne ao uso de barragens de terra e enrocamento, e dedica dois de seus oito capítulos às barragens típicas, além de apresentar fundamentos que intervêm na concepção, dimensionamento e construção das obras de terra.

O livro já está em sua segunda edição, ainda mais didática, com exercícios resolvidos ao fim de cada capítulo, ilustrando as aplicações práticas dos conceitos. É indicado para estudantes universitários dos cursos de Engenharia Civil, de Minas, Agronômica e outros.

Confira também o novo lançamento da Ofitexto, Debris flow na Serra do Mar!