Veja o relatório de Arthur Casagrande sobre a tragédia de 1967 em Caraguatatuba!

Confira na íntegra o relatório apresentado pelo Prof. Arthur Casagrande sobre os escorregamentos no trecho Serra de Caraguatatuba.

O Prof. Arthur Casagrande foi um dos maiores nomes da Geologia de Engenharia e Engenharia Geotécnica, ao lado de Karl von Terzaghi. Sua contribuição para o início do entendimento da catástrofe de 1967 foi recuperada dos arquivos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e preservada por Márcio Cunha na forma do relatório a seguir, de julho de 1967, apresentado na íntegra.

Esse relatório consta do material complementar do livro Debris flow na Serra do Mar, de Márcio Angelieri Cunha, Marcos Saito de Paula, Wilson Shoji Iyomasa, Marcelo Fischer Gramani e Faiçal Massad, publicado em 2022 pela Oficina de Textos.


Relatório apresentado pelo Prof. Arthur Casagrande sobre os escorregamentos no trecho Serra de Caraguatatuba

Objetivos: impressões concernentes aos escorregamentos próximos a Caraguatatuba, inspecionados em 21 de julho de 1967.

Por cortesia da Centrais Elétricas de São Paulo (Cesp), foi-me dada a oportunidade de inspecionar os escorregamentos de terra que ocorreram na Serra do Mar, próximo a Caraguatatuba, durante precipitação de chuvas excepcionais no mês de março de 1967. A viagem ao local foi feita por helicóptero, o qual foi cedido com este objetivo pelo Governo do Estado de São Paulo. Eu desejo expressar, nesta oportunidade, meus melhores agradecimentos a todos que concorreram para tornar possível a minha visita a esses escorregamentos. Durante a viagem de inspeção, fui acompanhado pelos senhores Darcy Andrade da Cesp, Lincoln Queiroz e Otto Kosch da Hidroservice, e outros.

Catastróficos escorregamentos causados por pesadas chuvas são bem conhecidas ocorrências em várias regiões montanhosas do mundo, incluindo a Serra do Mar, pois todos os anos tenho tido oportunidade de examinar numerosos escorregamentos. Entretanto, eu nunca vi, nem li alguma notícia sobre tão grande número de escorregamentos de terra, ocorridos em uma só área e em um período de poucas horas.

Foto de inúmeras árvores derrubadas e outros resíduos que foram levados pelo escorregamento de massa.

Registro da catástrofe, tirado da obra Debris flow na Serra do Mar. Todos os direitos reservados

Quando voamos sobre o centro da área afetada, podiam-se ver recentes feridas de escorregamentos em quase todas as encostas circunvizinhas, realmente uma visão espetacular.

Podia-se ver, também, como a estrada para Caraguatatuba, a qual desenvolve montanha abaixo, tinha sido obstruída pelos escorregamentos em muitos lugares. Já está outra vez em uso, após a desobstrução e reconstrução de emergência.

As características visíveis desses escorregamentos são:

  1. Eles afetavam somente o relativo fino manto de solo residual que cobre a rocha-mãe.
  2. Eles ocorreram somente nas encostas saturadas.
  3. A rocha-mãe está agora parcialmente exposta em uma considerável porcentagem dos escorregamentos.

Nosso helicóptero aterrissou no vale, próximo de um dos maiores escorregamentos. Isso me ofereceu a oportunidade de subir na encosta onde houve o escorregamento, para examinar a natureza do solo remanescente nas encostas criadas pelos escorregamentos e as superfícies da rocha-matriz, também exposta pelo mesmo. Mais tarde, nós inspecionamos amostras retiradas de vários pontos, as quais estão armazenadas num prédio próximo dessa área de pouso.

Todas essas observações conduziram-me às seguintes tentativas de conclusões:

  1. O manto residual consiste em um solo de textura arenosa, o qual contém uma quantidade razoável de finos que o torna semipermeável.
  2. Abaixo do manto de solo, a rocha decomposta é intensamente fissurada a uma profundidade de vários metros e é muito mais permeável do que o solo superior.
  3. Os escorregamentos foram provavelmente produzidos pelo nível da água infiltrada na rocha, que subiu a uma altura jamais alcançada, criando altas pressões intermoleculares entre o manto de solo, o que causou uma correspondente diminuição em sua resistência ao cisalhamento.
  4. O aumento do peso da mesma massa do solo proveniente de sua total saturação provavelmente contribuiu para a instabilidade.
  5. Segundo uma testemunha ocular, os escorregamentos, de forma geral, começaram do alto, onde se pode ver árvores tombando; isso sugere que os escorregamentos foram precedidos pela abertura de rachaduras no cimo para a massa em potencial escorregar, e essas fendas facilitaram grandemente a penetração das águas através do solo, até as fendas da rocha.
  6. A supersaturação do solo na massa a escorregar, combinada com o grande run-off nos regatos e rios causado pelo escorregamento de massa liquefeita e espalhada na torrente, formou uma típica torrente de lama em movimento. Tais liquefações de massas de escorregamentos que se transformam em torrentes de lama são fenômenos bem conhecidos no oeste dos Estados Unidos.

Enquanto o helicóptero circulava repetidamente sobre a área, tentei identificar algum antigo escorregamento com rocha exposta, mas não consegui observar nenhum sinal significante. Isso, juntamente com o fato de que tão grande número de escorregamentos ocorreu num mesmo dia, podia confirmar que a precipitação de tão grande intensidade é extremamente rara na área e que possivelmente um acontecimento meteorológico jamais ocorreu antes em toda essa área em particular, e não ocorrerá novamente em um previsível futuro. Entretanto, não podemos desprezar a possibilidade, extremamente remota, de que uma tal ocorrência talvez possa acontecer em futuro próximo, justamente pela questão do acontecimento anterior semelhante; nós podemos somente afirmar que a repetição de tal acontecimento é extremamente improvável por várias décadas.

Em contraste com a questão concernente à probabilidade de repetição de uma precipitação de intensidade sem precedentes, é impossível expressar um juízo relativo à estabilidade das encostas dessa área. Onde os escorregamentos expuseram a rocha-matriz, particularmente próximo ao fundo da área de escorregamento, a rocha pode agora ser drenada facilmente, e é muito improvável que pressões intermoleculares críticas possam se desenvolver outra vez no manto adjacente às áreas de escorregamento com a magnitude que ocorreram no último março. Além disso, as encostas que não sofreram escorregamentos foram testadas sob condições extremamente severas, e elas podem ter um suficiente grau de segurança contra escorregamentos sob chuvas de máxima intensidade. Entretanto, podemos concluir que essa área é agora segura contra maiores deslizamentos em relação a como era anteriormente, e mais segura do que outras áreas similares da Serra do Mar, as quais não foram expostas a tão grande intensidade de chuvas. No entanto, nós podemos esperar agora pequenos escorregamentos ao longo da periferia da área atingida, e particularmente, a ser esperada por um longo tempo, uma inusual quantidade de solo será levada pelas chuvas das encostas feridas.

Danos menores continuarão a prejudicar a estrada, visto que essas encostas da montanha podem agora ser consideradas razoavelmente seguras contra a repetição de semelhante evento, como aconteceu no último março. Durante os próximos anos, será prudente fechar o tráfego durante os períodos de pesadas chuvas, até que as instabilidades existentes ao longo das áreas de escorregamento tenham sido ajustadas e tenha crescido alguma vegetação nas áreas de escorregamentos.

Especial atenção a respeito da projetada usina subterrânea, obviamente a estação de força não poderá ser prejudicada por tais deslizamentos. Algumas modificações na disposição do túnel de acesso, canal de fuga e parte da força podem ser desejáveis e, de acordo com Lincoln Queiroz, tais modificações já estão sendo consideradas. Atenção também precisa ser dada para providenciar uma efetiva drenagem da rocha abaixo do manto de solo em quaisquer áreas onde escorregamentos possam danificar estruturas auxiliares. Em parte, os túneis poderiam ser utilizados para tal drenagem e, em parte, a remoção do manto do solo nas áreas críticas pode oferecer uma proteção positiva.

Para se conseguir uma melhor compreensão do mecanismo desses escorregamentos, que, por sua vez, pode ser útil no projeto de medidas de proteção, sugerimos as seguintes observações:

  1. Investigar que extensão o baixo nível de água subterrânea na rocha afetou na vizinhança dos grandes escorregamentos. Para esse objetivo, compare os níveis da água subterrânea em finos já evidenciados antes dos escorregamentos com o nível atual.
  2. Fazer uma pesquisa dos ângulos das encostas nas quais houve escorregamentos e nas encostas de sua vizinhança que não foram afetadas por eles, num esforço para determinar, em base estatística, se há um ângulo crítico de encosta abaixo do qual escorregamentos são improváveis, ainda que sob severas condições de chuvas. Tais estudos teriam de ser baseados em levantamentos aéreos de mapas da região.
  3. Coletar testemunha ocular acerca da maneira e velocidade com a qual um escorregamento individual desenvolveu e progrediu.
  4. Não é somente a intensidade da chuva a principal causadora de escorregamentos, mas também o total das chuvas, por período de uma semana, duas semanas, quatros semanas e por toda a estação chuvosa que precede os escorregamentos, pode ser comparado como registros disponíveis por períodos iguais para a mesma área, assim como para outras áreas da Serra do Mar.
  5. Em conclusão, enfatizo que as impressões e comentários acima apresentados são baseados em uma breve visita na área de escorregamento. Seriam requeridos tempo e detalhada investigação antes que eu fosse capaz de conseguir uma análise satisfatória do mecanismo desses escorregamentos e fazer recomendações específicas aos problemas de engenharia.

Segundo minha observação dos inusuais e severos problemas de escorregamentos que ocorreram durante o ano passado em diversas regiões das cadeias de montanhas do Brasil, eu concluo que há urgente necessidade de estudo por uma comissão de engenheiros e geólogos brasileiros, conhecidos técnicos no assunto. Tal grupo poderia desenvolver seus trabalhos independentemente de engenheiros especialistas em problemas específicos, tais como segurança da estrada e da usina hidroelétrica. O objetivo deste grupo seria rever os dados e hipóteses existentes, para coordenar as investigações adicionais e, em último, não como fim, obter recursos financeiros dos Governos Federal e Estadual para financiar estas investigações. Como estes escorregamentos são estritamente relacionados com as condições geológicas e as propriedades do solo residual, eu considero importante que tal grupo de trabalho seja dirigido por um engenheiro com estudo especializado em solos residuais, que seja familiarizado com a geologia destas regiões e que tenha feito investigações semelhantes em escorregamentos.

Atenciosamente,

Arthur Casagrande


Para saber mais

Adquira o livro Debris flow na Serra do Mar para uma investigação geológico-geotécnica aprofundada sobre a catástrofe ocorrida em 1967 e futuras previsões para a região!

Capa de Debris flow na Serra do Mar, livro que contém o depoimento de Arthur Casagrande.