Entrevista com Igo F. Lepsch: análise de fitólitos

A análise de fitólitos, partículas de sílica amorfa que se acumulam ao redor ou dentro das células dos tecidos vegetais, foi introduzida recentemente no Brasil. Essas minúsculas partículas, também chamadas de corpos silicosos­, são consideradas microfósseis terrestres, uma vez que permanecem no solo por muito tempo. Elas têm sido utilizadas em vários estudos, destacando-se os paleoambientais e arqueológicos.

As pesquisas sobre esses corpos silicosos, em conjunto com dados atuais da vegetação, auxiliaram na compreensão dos hábitos alimentares dos grupos étnicos que habitavam as Américas antes de os europeus aqui chegarem, bem como no entendimento de aspectos relacionados à história dos solos.

Com o intuito de explicar melhor os usos científicos e práticos dos fitólitos, entrevistamos Igo F. Lepsch, renomado especialista em solos. Confira:

Comunitexto (CT): Quando os fitólitos surgiram pela primeira vez em um artigo científico e qual a sua principal função nas plantas?

Igo F. Lepsch (IFL): Os primeiros estudos foram feitos em amostras coletadas pelo naturalista inglês Charles Darwin. Ele notou que as velas do navio HMS Beagle, durante as navegações perto da costa das ilhas de Cabo Verde, recolhiam cinzas de uma queimada que estava acontecendo na vegetação de uma dessas ilhas. Darwin recolheu e enviou um pouco dessas “poeiras” para o seu colega alemão Ehrenberg, da Academia de Ciências Berlin, o qual, em 1847, publicou um trabalho descrevendo partículas que denominou Phytolitharien, por pensar que eram esqueletos de organismos que viviam no interior das células vegetais.

Mais tarde, Ruprecht (1866), verificando que as partículas de sílica amorfa encontradas no solo e nas cinzas de gramas que nele cresciam coincidiam na forma, denominou-as de fitólitos: do grego pedra (“lito”) das plantas (“fito”). De fato, os fitólitos podem ser vistos como “pequenas pedrinhas” (entre 10 e 200 micra) produzidas pelas plantas, muito semelhantes aos nossos vidros.

O homem tem feito vidro durante milhares de anos, por fusão conjunta de areia quartzosa (que é composta de dióxido de silício) com carbonato carbonato de cálcio. Ainda não sabemos bem como as plantas conseguem fazer seus “pequenos vidrinhos” sem derreter junto as areias e aqueles compostos químicos, mas sabemos que a maior parte dos solos é composta de minerais que contêm silício, e que as plantas se desenvolvem em solos cuja água tem concentrações muito diluídas de silício (na forma de pequenas moléculas do que chamamos de “ácido silícico”). Na verdade, depois do oxigênio, o silício é o elemento mais comum na crosta terrestre. As plantas absorvem o ácido silícico [Si(OH)4] através de suas raízes e posteriormente “juntam” (ou “polimerizam”) suas moléculas, transformando-as em pequenas partículas semelhantes ao vidro fabricado pelo homem. Essas partículas, tal como o vidro, podem ser “cortantes”. Muitas plantas têm folhas “afiadas” (cana-de-açúcar é um exemplo) ou com pequenos espinhos (ou pelos), que espetam e afastam delas os animais herbívoros. Portanto, muitas plantas evoluíram para formar fitólitos e com eles se proteger de seus predadores. Os fitólitos proporcionam outros tipos de proteção:

(a)   Suporte mecânico para as células e estruturas para sustentar os órgãos vegetais.

(b)   Resistência a estresses hídricos.

(c)   Neutralização de elementos tóxicos, como alumínio e metais pesados.

Veja abaixo algumas fotos, tiradas sob microscópio, desses “vidrinhos” das plantas.

Imagem microscópica de fitólitos de solos de Búzios.

Foto de fitólitos de solos de Búzios (RJ), tirada por Heloisa H. G. Coe

Imagem microscópica de fitólitos de solos de Búzios.

Foto de fitólitos de solos de Búzios (RJ), tirada por Heloisa H. G. Coe

CT: Quando esses estudos tiveram início no Brasil?

IFL: Acredito que o primeiro estudo publicado no Brasil foi o de Sendulski e Laboriau, em 1966, com o título “Corpos silicosos de gramíneas do cerrado”.  A esse se seguiram vários outros sobre fitólitos e gramíneas dos cerrados, também de autoria de Laboriau e colaboradores, publicados na Revista Pesquisa Agropecuária Brasileira.

Sobre fitólitos em solos do Brasil, os primeiros trabalhos de que tenho conhecimento foram os publicados por Dolores Piperno et al. (1996), que estudaram solos da Amazônia, e Anne Alexandre et al. (1999), que trabalharam com solos do Triângulo Mineiro. Destaca-se também o trabalho publicado por Liovando M. da Costa e outros (Universidade Federal de Viçosa, MG), em 1992, com solos que continham corpos silicosos de esponjas (denominados “espículas”). Tais espículas foram encontradas em um local onde o solo era retirado para fabricar cerâmica, e tinham o formato de agulhas de vidro; incomodavam tanto os trabalhadores que tinham contato com o solo, por causa da coceira provocada pelos ferimentos dessas “agulhas de vidro”, que eles diziam que o barro com que trabalhavam tinha “pó de mico”.

CT: Sabe-se que esses estudos podem auxiliar na compreensão da história dos solos. O senhor pode explicar um pouco mais sobre isso?

IFL: Vou iniciar minha resposta a essa questão explicando um pouco como os fitólitos se formam no solo: A sílica é composta de dois elementos: oxigênio e silício, que são os mais comuns dos minerais primários (os originados das rochas) e secundários (os sintetizados no solo ou em organismos que nele vivem). Os minerais primários e secundários que contêm silício, denominados silicatados, decompõem-se com a ação das intempéries, liberando ácido silícico [Si(OH)4] – ou sílica solúvel –, que pode ser um precursor tanto de novos minerais secundários (argilas) como dos corpos silicosos das plantas e de alguns animais.

Então os vegetais absorvem o Si(OH)4 dissolvido na solução do solo, concentrando-o no interior de seus tecidos por meio da transpiração da água. Isso faz com que essa sílica se polimerize, o que resulta na deposição de partículas sólidas (e amorfas) de sílica hidratada (SiO2.nH2O), um biomineral conhecido como opala biogênica, que são os corpos silicosos conhecidos como sílico-fitólitos.

Com a morte da planta (ou parte dela, como a queda de suas folhas), seus restos são incorporados ao solo. Quando eles se decompõem para formar o húmus, uma parte desses fitólitos (os de tamanho menor) pode se dissolver, liberando ácido silícico para a solução do solo, onde ele poderá ser reciclado pela biota; outra parte do Si(OH)4 é lixiviada ao lençol freático, águas subterrâneas e cursos d’água. Contudo, muitos dos fitólitos podem ser preservados no solo por longos períodos, apesar de a sílica amorfa ter solubilidade menor que o quartzo, formando um “perfil de fitólitos no solo” que pode ser útil para vários estudos, uma vez que os fitólitos podem ser considerados microfósseis (a maioria tem tamanho entre 0,10 mm e 0,002 mm). A figura abaixo, retirada do livro 19 lições de pedologia, esquematiza essas reações do ciclo do silício em condições terrestres.

Diagrama do ciclo do silício em condições terrestres.

CT: Existem diferentes tipos de fitólitos?

IL: Sim. Apesar de o termo “fitólito” se referir mais a todas as secreções minerais produzidas pelas plantas, ele é mais usado para as partes da planta que são compostas de sílica (ou opala biogênica). As plantas acumulam também outras secreções minerais, e as mais comuns são as de oxalato de cálcio (wedelita, mesmo biomineral que forma as “pedras dos rins”), que alguns autores chamam de “calci-fitólitos“. Contudo, a importância dessas partículas de oxalato de cálcio para os estudos arqueológicos e ambientais é bem menor, pelo fato de eles serem muito solúveis no solo e terem morfologia semelhante. 

CT: Eles podem ser utilizados para recuperar solos danificados?

IFL: Acreditamos que os fitólitos podem ser utilizados para recuperar solos contaminados por metais pesados porque eles têm a capacidade de incorporar esses metais no interior de suas estruturas, fazendo com que fiquem imobilizados, de modo a não causar danos às plantas e aos animais. Tal processo de limpeza de solo contaminado leva o nome de “biorremediação”. Até o presente, sabemos que algumas plantas cultivadas em solos contaminados podem, aos poucos, extrair os contaminantes do solo incorporados aos seus tecidos orgânicos e também aos fitólitos. A incorporação aos fitólitos seria a mais desejável, uma vez que os metais estariam imobilizados por muito tempo.

Sabemos que fitólitos podem incorporar e até mesmo “sequestrar” esses contaminantes, mas ainda não sabemos a quantidade que é incluída no tecido orgânico vegetal (que pode facilmente voltar ao solo quando os restos vegetais se decompõem) e a que é incorporada nos fitólitos (que dificilmente poderão voltar ao solo). Sabemos que os fitólitos podem reter esses metais pesados do solo, mas há poucos estudos verificando quanto realmente eles podem reter. Pesquisas visando verificar esses aspectos estão sendo iniciadas por nós no Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais, em Montes Claros.

CT: Quais foram os resultados mais interessantes dessas pesquisas com fitólitos?

IFL: Um fato interessante e curioso: uma das pesquisas mostra que a identificação de fitólitos nas cinzas da maconha (Cannabis sativa) pode ser usada como um bom recurso subsidiário para identificar essa espécie quando ela é utilizada como droga alucinógena. E a identificação pode ser feita nas cinzas, depois de as folhas terem sido queimadas.

Em uma tese defendida na Universidade Federal Fluminense pela Dra. Heloisa G. G. Coe, que eu coorientei, foram estudados os tipos e a quantidade de fitólitos presentes em cada horizonte dos perfis de solos da região de Búzios (RJ). Verificou-se que nos solos dessa região existiam horizontes enterrados, nos quais o carbono foi datado pelo método de Carbono 14-AMS. As análises do conjunto de fitólitos desses horizontes enterrados permitiram reconstituir paleoambientes da região referentes ao Quaternário, identificando variações no tipo de vegetação e deduzindo que existiram períodos mais secos e mais úmidos que o atual em épocas passadas.

Referências bibliográficas

PIPERNO, D. R.; BECKER, P. Vegetacional history of a site in the Central Amazon basin derived from phytolith and charcoal records from natural soils. Quaternary Research, v. 45, n. 2, p. 202-209, 1996.

ALEXANDRE, A.; MEUNIER, J.-D. et al. Late holocene phytolith and carbon-isotope record from a latosol at salitre, South-Central Brazil. Quaternary Research, v. 51, n. 2, p. 187-194, 1999.

COSTA, L. M.; GUEDES, I. M. R.; JOHNS, W. D. Espículas de esponjas em solos de João Pinheiro, Minas Gerais. R. Ceres, v. 39, p. 597-603, 1992.

SENDULSKI, T.; LABORIAU, L. G. Corpos silicosos das gramíneas dos cerrados. I. In: SIMPÓSIO SOBRE O CERRADO, 2., 1965. Anais da Acad. Bras. Cienc. Rio de Janeiro: Ed. L. G. Laboriau, 1966. p. 159-185.


Para saber mais

Além de publicar diversos artigos científicos, o pesquisador, professor e especialista, Igo F. Lepsch produziu duas obras essenciais para quem está se especializando em Ciência do Solo.

O livro Formação e conservação dos solos está na segunda edição e aborda a composição dos solos e como seu uso pode ser sustentável, tudo isso com uma linguagem simples e precisa, e inúmeras ilustrações em cores. 

Capa de Formação e conservação dos solos.

Já a obra19 lições de Pedologia traz textos introdutórios à Ciência do Solo, especialmente sobre as condições brasileiras. Entre os temas abordados estão as rochas e os minérios que dão origem aos solos, os processos de intemperismo, a biologia, física e química, e a fundamentação e apresentação do Sistema Brasileiro de Classificação dos Solos.

Capa de 19 lições de Pedologia.