Mandioca, a mais brasileira das culturas, é fundamental na segurança alimentar do planeta – parte 1

Mandioca, aipim, macaxeira, uaipi, maniva são alguns dos nomes em que essa importante tuberosa é conhecida no País

O Brasil é um dos maiores produtores de mandioca do mundo, ocupamos a quarta colocação. O último levantamento da Conab mostra que, em 2022, o País deve produzir 18 milhões de toneladas em uma área de 1,24 milhão de hectares.

Cultivada em quase todas as regiões do Brasil, ela é utilizada na alimentação humana e animal e também é transformada em produtos industriais diversos, entre eles o etanol. Constitui-se, portanto, em importante fonte de renda para as populações rurais de norte a sul do País. 

Originária da América do Sul, atualmente a mandioca vem sendo cultivada em mais de 100 países, constituindo-se em um dos principais alimentos para mais de 800 milhões de pessoas, sobretudo aqueles que habitam as regiões tropicais e subtropicais do planeta.

O livro Mandioca: do plantio à colheita, da editora Oficina de Textos, foi organizado por Pedro Soares Vidigal Filho, Alex Henrique Tiene Ortiz, Manoel Genildo Pequeno e Aluízio Borém. A obra traz informações sobre a história e o cultivo desta tuberosa que é sinônimo da cultura brasileira e que foi domesticada na bacia amazônica há mais de 7 mil anos. 

Capa de Mandioca: do plantio à colheita.

Trata-se de uma leitura fundamental para profissionais da área, técnicos envolvidos na produção e estudantes porque apresenta dados sobre como produzir mais e melhor.

Nós conversamos com um dos organizadores, Prof. Dr. Pedro Soares Vidigal Filho. Acompanhe. 

1. Quais são os principais destaques da obra Mandioca: do plantio à colheita?

Pedro Soares Vidigal Filho (PSVF): A mandioca (Manihot esculenta Crantz), também conhecida como aipim ou macaxeira, é a mais brasileira das grandes culturas, que na atualidade se encontra disseminada em todo o mundo tropical e subtropical. Ela é cultivada em mais de uma centena de diferentes países, ocupando a 14ª posição em área em nível mundial, representando cerca de 1,7% da área colhida com atividades agrícolas no mundo, segundo dados da Food and Agriculture Organization of the United Nations – FAOSTAT (2018)

A importância da mandioca está relacionada ao uso intenso de mão de obra no plantio, nos tratos culturais e na colheita, assim como na geração de renda das populações, e no consumo humano e animal. Seus principais produtos industrializados são a farinha, a fécula ou amido e a tapioca. Além desses, vários outros produtos são obtidos no processo industrial de modificação do amido (fécula nativa), entre eles os amidos catiônicos, oxidados, esterificados, fosfatados e produtos gelatinizados.

Assim sendo, diante da relevância econômica e social, torna-se preponderante tanto a geração quanto a disseminação de conhecimento acerca dessa tuberosa, de forma que, ao ser cultivada, ela possa vir a expressar o seu máximo potencial.  Neste contexto, a publicação Mandioca: do plantio à colheita é uma obra inédita que chegou à Livraria Técnica Ofitexto no início de 2022. 

Organizado pelos Prof. Dr. Pedro Soares Vidigal Filho (UEM Maringá), Prof. Dr. Aluízio Borém (UFV Viçosa), Dr. Manoel Genildo Pequeno (in memoriam) e Dr. Alex Henrique Tiene Ortiz, o livro trata da mais brasileira das culturas, de grande importância socioeconômica e de nossa história, espécie que foi domesticada por povos originais da Bacia Amazônica. A obra encontra-se dividida em 13 capítulos, escritos por autores de especialidades diversas, que são profissionais de renome, e que atuam em destacadas instituições públicas estaduais e federais. Os diversos capítulos abordam aspectos da importância econômica e social; origem, botânica e descrição da planta; caraterísticas fisiológicas: fatores ambientais versus crescimento e desenvolvimento; manejo de solo; práticas culturais e manejos comuns à cultura; exigências nutricionais, calagem e adubação; descrição de cultivares atuais; métodos adequados a serem empregados no controle de plantas daninhas, de pragas e de doenças; métodos e sistemas mais eficazes a serem utilizados em lavouras irrigadas; práticas de colheita: manual, semimecanizada e mecanizada; e conservação pós-colheita das raízes tuberosas da mandioca.

2. Qual sua principal motivação para o desenvolvimento deste livro?

PSVF: A obra Mandioca: do plantio à colheita faz parte da série de publicações a respeito de culturas de importância econômica iniciada pelo professor Dr. Aluízio Borem (UFV), que sempre procurou especialistas para colaboração. No caso específico da mandioca, coube a mim, Prof. Dr. Pedro Soares Vidigal Filho, do Departamento de Agronomia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), a honra de ser convidado para organizar a publicação. Tal convite decorreu do fato de que sou conhecido em todo o país como Professor e Orientador de estudantes de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado que, ao longo de sua carreira acadêmica, sempre desenvolveu pesquisas com a cultura da mandioca. E, sem dúvidas, a publicação desta obra neste início de ano de 2022, ocasião em que comemoro 40 anos de carreira acadêmica na UEM, me deixa plenamente realizado.

3. A que tipo de público se destina o livro?

PSVF: Essa obra foi elaborada de forma a atender às necessidades de professores e de estudantes dos Cursos de Agronomia, Engenharia Agrícola e de Escolas Técnicas em Agricultura e, também, de produtores e profissionais que dão assistência técnica ao segmento produtivo desta cultura. Cada um dos seus 13 capítulos foi escrito por especialistas, de forma a discorrer sobre as mais recentes tecnologias e inovações empregadas em todas as etapas de seu cultivo. O livro é uma rica fonte de informações úteis a todos aqueles interessados no cultivo dessa importante tuberosa.

4. Além de brasileira, a mandioca tem muita história? São mais de 7 mil anos?

PSVF: A mandioca cultivada (Manihot esculenta Crantz) pode ser considerada uma das pérolas da Região Amazônica, uma vez que pesquisas mais recentes evidenciam que a Região Sudoeste da Amazônia é o centro de origem da espécie Mesculenta ssp. flabelifolia, considerada o ancestral silvestre da mandioca cultivada.  

Tais pesquisas evidenciam também que a domesticação da mandioca (Manihot esculenta) ocorreu em uma região que compreende os estados do Acre, Rondônia (Sudoeste da Bacia Amazônica), Mato Grosso e, possivelmente, o Norte da Bolívia, num período estimado de 5.000 a 7.000 a.C.

5. Mandioca e o folclore brasileiro

Na cultura popular de nosso País, a lenda da origem da mandioca está sempre presente, em diversas versões. A mais frequente é aquela que diz que em uma comunidade indígena a esposa do cacique engravidou e gerou uma linda criança, que dia após dia tornou-se a alegria de todos. Entretanto, surpreendentemente a criança adoeceu e, repentinamente, acabou falecendo. Tal fato resultou num trauma terrível para todos os membros daquela comunidade. Após a realização do cerimonial fúnebre o corpo da criança foi enterrado e, conforme a crença, dia após dia a cova era irrigada.

Passado algum tempo, daquela cova surgiu uma plantinha que foi diuturnamente cuidada com muito carinho. E, completado o ciclo vegetativo, foi observado que na parte basal daquela plantinha o solo rachou, e por curiosidade, os indígenas cavaram o solo e encontraram as raízes tuberosas que, na língua nativa, foram denominadas Mani, Mani oca (Casa de Mani, Corpo de Mani) que, no idioma português, traduziu-se em Mandioca. A seguir, eles cozinharam tais raízes tuberosas, acharam-nas deliciosas, e passaram a se alimentar da mandioca, do Corpo de Mani.

6. Existem várias espécies de mandioca?

PSVF: A mandioca (Manihot esculenta Crantz) pertence ao gênero Manihot que é constituído de 98 espécies distribuídas desde o Texas, Estados Unidos, até a Argentina.

No Brasil ocorrem 78 espécies do gênero Manihot, das quais 67 são nativas. Entretanto, apenas duas espécies do gênero Manihot apresentam certa importância econômica. Uma delas é a Manihot glaziovii popularmente conhecida como Maniçoba-do-Ceará, que apresenta porte arbustivo/arbóreo e não produz raízes tuberosas. Esta espécie, como toda Euphorbiaceae, produz látex que pode ser e já foi utilizado na produção de borracha, enquanto a parte aérea, nas Regiões Norte/Nordeste, é usada na alimentação animal. 

Foto de um pé de mandioca com uma grande parte aérea.

Manihot glaziovii Muell. Arg. Jardim Colonial de Plantas do Gênero Manihot (Univ. de Brasília) (Fonte: Vidigal Filho, 2017)

A outra espécie, Manihot esculenta Crantz, denominada de aipim, macaxeira, mandioca mansa ou mandioca de mesa, mandioca de indústria ou mandioca brava, é aquela que, de fato, apresenta importância econômica e social para os povos das regiões tropicais e subtropicais de nosso planeta.

Imagem de uma lavoura de mandioca, com um cachorro parado no canto direito, entre duas fileiras de plantas.

Lavoura de mandioca (Manihot esculenta Crantz). Assentamento Pontal do Tigre, Querência do Norte – PR (Fonte: Kanpoaun, 2021.

7. Quantas cultivares temos registradas e em que regiões?

PSVF: A domesticação da mandioca, a partir de M. esculenta ssp. flabellifolia, resultou em dois principais grupos vegetais os quais diferem na toxicidade de suas raízes tuberosas, quais sejam, mandioca mansa ou doce (mandioca de mesa), e mandioca brava, amarga, ou de indústria. 

As cultivares consideradas mansas (mandioca de mesa) são utilizadas no consumo in natura, e apresentam ótimo cozimento, ótimo sabor e baixo conteúdo de HCN nas raízes tuberosas (< 100 mg de HCN por kg-1 de polpa crua).

Por sua vez, as cultivares consideradas bravas apresentam elevado conteúdo de ácido cianídrico nas raízes tuberosas (> 100 mg de HCN por kg de polpa crua), e são utilizadas na produção industrial de farinha seca, de farinha d’água, de amido etc.

Em relação a cultivares, cerca de 95 encontram-se inseridas no Registro Nacional de Cultivares. Na Região Centro-Sul (SP, MS, PR), onde se localiza a grande maioria das indústrias de fécula do país (80%), atualmente os agricultores vem utilizando um total de 13 cultivares, sendo que seis são cultivares tradicionais e sete são cultivares melhoradas.

Ainda na Região Centro-Sul, encontram-se disponíveis seis cultivares de mandioca de mesa (mansas) oriundas de programas de melhoramento. Entretanto, temos que considerar que nas diversas regiões do país um grande número de cultivares mansas, denominadas tradicionais, landraces ou creoulas, são comumente utilizadas pelos agricultores, e na maioria das vezes, não se encontram registradas. 

8. Como os nativos amazônicos aprenderam a usar como alimento as raízes tuberosas da mandioca brava?

PSVF: Ao longo do processo evolutivo, as sociedades humanas nativas oscilaram entre períodos de nomadismo, alternando entre hábitos coletores e caçadores, onde os indivíduos se alimentavam da coleta de raízes e de frutos diversos e/ou da carne de animais. Finalmente, deu-se o início dos primórdios da agricultura, momento no qual as populações passaram a fixar moradia, justamente por terem aprendido a cultivar espécies locais e a prepará-las e usá-las na alimentação do dia a dia. Nas regiões amazônicas, a mandioca destaca-se, por frequentemente vegetar ao longo das margens dos rios, onde suas raízes tuberosas eram e são consumidas por animais silvestres roedores.

Ao observarem tais animais se alimentarem da mandioca, e estando famintos, os nativos resolveram experimentá-la. No entanto, ficaram frustrados ao constatarem que o sabor daquelas raízes era muito amargo, e, além disso, alguns passaram mal ao ingerir a massa de tais raízes. 

Dessa forma, a mandioca foi incluída no conhecimento dos pajés das comunidades como uma espécie que deveria ser evitada pois tinha princípios malignos. Mas por que maligno? A mandioca selvagem emerge na natureza com duas qualidades: uma delas é conhecida como a mandioca brava e a outra mansa. Como seu apelido indica, a mandioca brava é nociva, uma vez que, em função de seu elevado conteúdo de cianeto (HCN), a sua ingestão constante pode resultar em morte ou, o que é mais comum, causar paralisia severa, doença que na África é conhecida como konzo. 

Mesmo assim, com o tempo e aprendendo com a nocividade da planta, mitologias acerca do consumo próprio e seguro da mandioca emerge entre os nativos em toda a América tropical. Um exemplo a se observar é o caso dos Suyás, hoje autodenominados Kisêdjê. O antropologista e etnomusicologista americano Anthony Seeger, ao realizar sua pesquisa no Parque Indígena do Xingu durante a década de 1970, registra em seus diários de pesquisa como a tribo Suyá codificou em seus rituais o cultivo e preparo seguro da mandioca e, também, o cultivo e o preparo do milho. A mitologia é o ritual denominado da “Festa do Rato”.

Os Suyás narram e cantam que, num belo dia, uma indígena da comunidade estava a banhar o seu nenenzinho nas águas do rio Suiá-Missu, quando um rato começou a conversar com ela. O pequeno roedor a instruiu-a como cultivar e preparar a mandioca e o milho. No caso da mandioca, o rato explicou à mulher que deixasse as raízes de molho e ralassem-nas, para depois cozinhá-las, assegurando-a que, após este tratamento, ela poderia dar de comer tais raízes às suas crianças.

A princípio, a indígena ficou confusa, não acreditou naquela estória, mas, passado certo tempo, a fome na comunidade agravou-se e, então, ela decidiu seguir os conselhos concedidos pelo o rato. A mulher preparou um tipo de bolinho da massa da mandioca e levou para a comunidade experimentar. A aprovação foi unânime, e todos ficaram surpresos ao saberem que aqueles bolinhos eram oriundos das raízes daquela planta maligna.

A partir daí, este conhecimento secular de detoxificação das raízes tuberosas da mandioca foi disseminado por toda a região tropical e subtropical onde se cultiva mandioca. Esta estória consta de uma canção, denominada Canção do Rato, que faz parte dos rituais do povo Suyá (Kisêdjê) que vive no Parque Indígena do Xingu.

Confira a parte 2 da entrevista aqui.